A Proposta Ofensiva

Clarice, como já sabemos, nunca foi mulher de pouco. Era daquelas que sabiam muito, falavam várias línguas e ainda tinham a audácia de pensar. Um perigo para qualquer empresa que preze pela mediocridade bem remunerada dos incompetentes.

Engenheira de formação, Clarice abandonou os cálculos quando percebeu que, na conta final, o engenheiro medíocre do lado ganhava mais do que ela – e ainda tinha a pachorra de pedir ajuda pra resolver erro de projeto. E ela? Ganhava experiência… e gastrite.

Com a altivez de quem prefere o deserto ao carpete cinza do escritório, Clarice largou tudo e foi estudar árabe no Oriente Médio. Por quê? Porque sim. Porque era livre. Porque a vida é curta demais pra aturar gerente que usa a palavra “meritocracia” com seriedade.

Com a fluência no árabe e inglês, ela virou tradutora – e aí veio a inteligência artificial. Que de “inteligente” só tem o nome, porque Clarice ainda não conheceu máquina que soubesse traduzir um hadith sem transformar as palavras do Profeta num discurso de startup.

Sem muitos clientes, aceitou uma indicação de um casal amigo para trabalhar numa empresa de certificação… veja bem, ironia do destino. Ela, que sempre teve alergia a hierarquia e prazo de entrega, indo parar justamente numa empresa que certifica regras…

A entrevista foi uma maratona. Quase precisou de passaporte. Teve que repetir seu currículo pra seis pessoas diferentes, que fingiam surpresa como se não tivessem lido absolutamente nada antes. Mas Clarice sorria, educadamente, com aquele brilho nos olhos de quem queria, no fundo, estar bordando uma caveira na sua mortalha.

Passou por todas as fases – com louvor, diga-se. Até que veio ela. Dona Laláu.

Dona Laláu era uma jovem senhora, entre os 35 e os 40 anos, embora a espessura da maquiagem impedisse qualquer cálculo preciso. Clarice, acostumada com paredes coloniais, sabia reconhecer reboco antigo mal disfarçado – e ali tinha pelo menos três demãos de esperança vencida.

Dona Laláu começou cheia de afeto enlatado: “Clarice, você é impressionante! Imagino como foi difícil, na sua época, estudar engenharia…”
Clarice gargalhou. “Minha época”? Ora, minha filha, você deve ter só uma década a menos – ou a mesma idade e um espelho otimista.

Laláu não entendeu a risada, claro. Seguiu o roteiro com a firmeza de quem treinou no espelho, e ao fim lançou a bomba com um risinho quase fofo:
“Agora, Clarice, faça sua proposta salarial… mas que não seja dez mil reais, hahah!”

Clarice, sem perder a compostura, nem a ironia, propôs R$ 2.500 para 25 horas semanais. Afinal, alguém precisa viver – e viver, no caso dela, inclui ler, cuidar dos gatos, bordar críticas sociais e tomar café em silêncio.

Mas aí veio a granada:
“Ahhh… então, Clarice… a empresa pode pagar um salário mínimo para trabalho integral.”

Clarice parou… Um silêncio digno do deserto onde viveu. Olhou firme e respondeu: “Obrigada, mas acho que vou recusar esta proposta ofensiva.”

Pelo jeito, a palavra “ofensiva” não caiu bem. Laláu travou. Não estava acostumada com gente que sabia usar adjetivos com precisão. O mundo corporativo, afinal, prefere eufemismos: “ajuste estratégico”, “desafio orçamentário”, “colaborador proativo”…

Clarice levantou. Agradeceu com o mesmo sorriso que usaria ao se despedir de uma barata. Voltou para sua casa nas montanhas. O telhado ainda pinga, mas pelo menos lá ninguém oferece um salário mínimo como se estivesse dando um favor.

No caminho, Clarice pensou: o problema não é trabalhar. O problema é fingir que isso aqui não é uma palhaçada.

E bordou isso numa almofada:
“Não é reboco, é maquiagem emocional.”

À venda por R$ 80 reais. Mas só para quem entende o valor.

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2 Comentários

  1. Francisco Maia

    Texto maravilhoso! Tô apaixonado por seu humor ácido!

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