Os Olhos de Camelo e o Fim do Terceiro Round

Clarice já não acreditava em príncipes desde os 27, mas aos 42 ainda guardava um fiapo de fé. Um fiapo tão fino que, se fosse costurar uma meia-calça com ele, rasgaria a dignidade no meio.

Pois foi nessa fase – a da esperança cautelosa, regada a filtro solar e água com limão – que Clarice conheceu o terceiro. Sim, o terceiro. Não mais “o amor da vida”, “o meu homem”, “o meu futuro”. Apenas “o terceiro”. Número. Estatística. CPF.

Aconteceu num fim de tarde, desses em que a luz bate enviesada e as decisões ruins ganham ar poético. Estavam na casa de amigos, ela sorvendo um café passado no coador de pano e ele, estrangeiro, com aqueles olhos de camelo tristes que fazem a gente esquecer que camelo cospe. Quarenta minutos de conversa e o sujeito manda: “Eu te amo.”

Clarice, mineira, com aquele instinto desconfiado herdado do avô que enterrava o dinheiro dentro de latas de Nescau, só arqueou uma sobrancelha e pensou: Ou é louco, ou é oportunista. Mas se for bonito, posso escutar mais dez minutos.

Dez minutos viraram dois meses. Dois meses viraram casamento. E o “eu te amo” virou “cadê meu carregador?” e “você viu minha toalha?” numa velocidade que nem o Google Tradutor acompanha.

Clarice jurava que era golpe. Refugiado querendo um visto, pensava. Mas, surpresa: ele já tinha. Estava no Brasil com mais direitos que ela. E, ainda assim, ela caiu. Não pela nacionalidade, mas pelos olhos de camelo – que, aliás, Clarice só foi descobrir depois que também miravam pastos vizinhos com uma constância bovina.

Sim, Clarice foi traída. Duas vezes. Porque ela é daquelas que acreditam na segunda chance – ou, como ela mesma diz, é daquelas que confunde intuição com TPM e dá margem ao erro como quem oferece cafezinho.

Na primeira, ela engoliu o choro com um misto de humilhação e chá de cidreira. Na segunda, ela fez as malas dele em silêncio, com a frieza de quem já imprimiu três vias de divórcio no passado e tem o número do cartório salvo nos favoritos.

Mas, o mais curioso não foi o fim. Foi a naturalidade com que ele – o terceiro – reagiu ao anúncio da separação. Não implorou, não chorou, não fingiu arrependimento. Apenas disse: “Você vai se arrepender.”

Clarice riu. Riu com aquele riso que vem de quem já viu coisa demais, inclusive a nota do motel no bolso da calça do próprio marido com CPF da amante e tudo.

“Arrependimento é pra quem tem dúvida. E eu, querido, só tenho certeza de que nunca mais me engano com os olhinhos de camelo.”

Mentira. Provavelmente se enganaria, se viesse com chá quente e um bom papo sobre geopolítica. Mas a gente finge que aprende, não é mesmo?

A papelada do divórcio veio fácil. A paz, mais ainda. Clarice voltou pra sua casinha nas montanhas, onde as maritacas incomodam menos que promessas de amor eterno. E onde, se for pra encarar traição, que seja dos tico-ticos que roubam as amoras do pé e ao menos não mentem sobre isso.

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6 Comentários

  1. Fernanda De

    MUITO bom! Eu adoro o humor da sua escrita, bem presente mas nada escancarado. Parabéns.

  2. Francisco Maia

    Eu já era o presidente do fã clube da bordadeira. Agora descubro que terei que fundar o fã clube da escritora! Amei!

  3. Acho que estou ficando viciada na escrita da Clarice. Que delícia de ler. Com certeza, o dono dos olhos de Camelo que perdeu.

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