Clarice achou que resolveria tudo se mudando para as montanhas.
Sem vizinhos, sem fila, sem barulho, sem a obrigação cívica de sorrir ao cruzar com alguém no corredor do prédio.
Um eremitério contemporâneo, com fogão a lenha, mato até o tornozelo e contato humano limitado a um “bom dia” mensal no mercadinho que só aceita dinheiro vivo ou PIX.
Só que Clarice esqueceu um detalhe:
A internet.
A internet é o novo aglomerado.
A nova rua.
O novo condomínio.
E a humanidade, essa entidade barulhenta e excessiva, agora entra na sala de descanso de Clarice, 24 horas por dia, 7 dias por semana.
Clarice, que sempre teve amigos queridos – pessoas com história, profundidade, e o irritante hábito de querer conversar, agora se vê cercada por notificações que brotam como fungo em rodapé úmido.
Um manda áudio de 6 minutos. Outro manda um meme. Outro manda o print do meme. Outro manda um vídeo dizendo “precisa ver até o fim”. E Clarice? Só queria ouvir o barulho do vento batendo na telha solta.
Ela ama os amigos, claro. Mas é um amor adulto, sincero e desapegado.
Quem é amigo da Clarice precisa ser do tipo que não se ofende com silêncios longos. Que não exige resposta rápida. Que entende que sumir é um direito inalienável da mulher contemporânea.
Inclusive, Clarice reconhece: tem sido pouco útil pros amigos.
Não é por maldade. É por cansaço mesmo.
Outro dia, uma amiga começou a desabafar:
— “Não tô vendo resultado em nada do que faço… acho que meu coração não tá em nada.”
Clarice, com a delicadeza de quem já teve a alma prensada por boletos, respondeu:
— “Nunca tive esse privilégio. Trabalhei a vida inteira com coisa tão agradável quanto chute na canela, só pra poder bancar o que eu realmente amo – e olhe lá.”
A conversa morreu ali. E Clarice não se desculpou. Porque, no fundo, ser brutalmente sincera também é uma forma de preservar energia – a dela.
Clarice está exausta.
Mas não é uma exaustão qualquer.
É um cansaço tão profundo, tão essencial, que ela já passou da fase do burnout.
Ela está cansada até pra ter um burnout.
O colapso emocional dela pediu demissão antes de começar.
A terapeuta sugeriu mindfulness, mas Clarice respondeu com um bocejo e uma colherada de doce de leite.
Ela acorda e dorme com a sensação de que não descansou.
Mesmo vivendo num lugar onde o tempo parece ter desistido de passar, a mente dela continua presa num carrossel feito de algoritmos, boletins de tragédia e pedidos de pix emocionais.
Cada mensagem nova é um lembrete de que a humanidade está sempre por perto – e sempre querendo alguma coisa.
Outro dia, alguém escreveu:
— “Saudades de você, sumida!”
Clarice respondeu mentalmente:
— “Também tô com saudade de mim.”
Porque Clarice sente falta de quando ela era só ela.
De quando não precisava cuidar de mil vidas emocionais simultâneas.
De quando os problemas dos outros não chegavam empacotados por notificação push.
De quando ficar em silêncio era só ficar em silêncio – e não um ato político.
Ela considerou apagar tudo. Viver só com livros, gatos e o som da chaleira apitando.
Mas aí lembrou que tem uma alergia horrível a pelo de gato.
E também gosta de saber das coisas.
E que as amigas compartilham links de descontos úteis.
E que, no fundo, é difícil existir – mas mais difícil ainda é sumir por completo.
Então, ela segue.
Um pé no mato.
Outro no Wi-Fi.
E a alma suspensa entre o modo avião e a vontade de sumir no modo silencioso.
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