Eu não lembro de quase nada da minha adolescência.

Sério. Se você me perguntar onde foi a viagem de formatura, vou responder com segurança: “Foi.” Agora, para onde, com quem, por quê… aí já é exigir demais de um cérebro que mal lembra o que almoçou ontem. Minha mente é tipo videocassete de locadora em 1989: rebobinada demais, fita gasta, som chiando, algumas cenas engolidas pra sempre.

Mas tem coisas que ficam. Algumas memórias parecem ter sido tatuadas na parte do cérebro onde Deus, na Sua infinita ironia, colocou a função “repetir momentos de vergonha em loop às 3h da manhã”. E hoje eu vim falar de uma dessas obras-primas: o dia em que descobri que gesso é frágil…

Contexto: anos 80. Aquele período histórico que, olhando hoje, parece que o planeta entrou num acordo coletivo de mau gosto. Muito laquê, muito neon, muito jeans desbotado e zero noção. Adolescência naquela época era tipo: “Toma aqui uns hormônios, umas músicas do Menudo, umas ombreiras, e vê o que você consegue fazer com isso.”
Spoiler: a gente não conseguiu muita coisa.

Na escola, o terror da semana era o famoso trabalho em grupo. Que se resumia em 3 pessoas fazendo tudo e o resto reaparecendo no dia da apresentação: “Ficou pronto?” Eu, no caso, sempre transitava entre a que fazia demais e a que errava espetacularmente. Versatilidade, chamam.

Dessa vez, a vítima do destino se chamava Raquel. Ela morava ali pertinho da escola, naquele prédio que todo mundo chamava de “prédio chique”. Fachada de pastilha, portaria séria, porteiro que olhava pra nossa cara de uniforme como quem vê vândalo em potencial. E tinha dois elevadores. Isso era praticamente status de embaixada pra gente…

O combinado era:
— A gente faz o trabalho no salão de festas – a Raquel disse, toda plena. — Minha mãe já reservou.

Chegamos todos carregando cartolina, régua, cola, aquelas canetinhas que manchavam o dedo até a semana seguinte, e uma quantidade de ansiedade social que hoje renderia diagnóstico, remédio e terapia.

Tínhamos um plano: colar tudo, desenhar setinhas, fazer um título enorme em degradê (porque ninguém respeitava o limite do bom senso) e, por fim, enrolar as cartolinas num rolinho bonito, para a grande apresentação em aula.

Eis que Laurinha, a fiel escudeira — aquela que batia na minha cintura mas se achava irmã do He-Man — resolve brincar de arremessadora profissional de cartolina.
Ela gritou “pega!”, arremessou o rolo pra cima e… pronto: as cartolinas foram tragadas pela frestinha do forro rebaixado, desaparecendo como se o teto tivesse fome de material escolar.

Silêncio.

Aquele silêncio que anuncia catástrofe.

Enquanto todos olhavam pro alto em pânico, o espírito esportivo tomou meu corpo. Eu, eterna jogadora na defesa do time de vôlei, senti o chamado da pátria estudantil:

“Isso eu pego no pulo.”

Me preparei como se estivesse numa final olímpica escolar:
pernas flexionadas, concentração absoluta, cartolinas como prêmio da vitória moral.

E, então, eu saltei…
Saltei com toda a potência que um uniforme de escola de 1° grau pode conter.
No auge do voo, percebi que teria que me apoiar em alguma coisa na volta, e o que estava ali, ao alcance do toque?

Aquela tirinha de gesso, aquele “murinho” ornamental que escondia a luz e o dinheiro do salão de festas do condomínio.

No instante em que minha mão tocou o gesso, o gesso olhou pra mim e falou:

“Não, querida.”

E veio tudo abaixo.

Não aquele pedacinho.
Não só a bordinha.
O teto inteiro do salão de festas!

100m² de gesso despencando numa sinfonia de destruição.
Nuvem de poeira subindo como explosão de fim-do-mundo de filme classe C.
A gente tossindo, gritando, tentando entender quem invocou o apocalipse arquitetônico.

E, sincronizada como piada pronta, a porta do elevador social se abriu:

Plim.

Sai Raquel.
Sai a mãe da Raquel.
As duas com cara de gente que paga o condomínio em dia e leva a vida a sério.
Na mão delas: canetinhas coloridas, prestes a colaborar com o trabalho.
No chão delas: o salão inteiro transformado em deserto de escombros.

A mãe olha a cena, olha pra mim, inspira o ar com poeira fina e pergunta:

— O que que vocês fizeram?

Eu, coberta de gesso até o último poro da vergonha, respondi:

— Foi sem querer…

A frase pairou no ar poucos segundos. Mas a sensação de catástrofe social, essa ficou pra sempre, tatuada no cérebro juvenil, preguiçoso e falho em tantas memórias… exceto nas traumáticas, claro.

Porque tem aprendizados que a vida enfiou no meu couro cabeludo junto com a franja do cabelo anelado:

— As cartolinas que lutem.