Clarice sempre teve uma queda por lugares com história — mas nunca soube se era paixão pela memória arquitetônica ou só um problema sério de autoestima imobiliária. Quando morou no Oriente Médio, não foi diferente: em vez de um apartamento moderno com ar-condicionado funcionando, ela optou por uma casa ancestral, no bairro fundacional da cidade, com janelas que contavam histórias (e deixavam passar vento por todos os buracos).

A casa era uma joia — daquelas que brilham à distância, mas te cortam quando você chega perto. Um verdadeiro palácio decadente: pátio interno com fonte seca, pé de mexerica e limoeiro carregado, piso de mármore branco e preto em losangos — dignos de novela das oito ou de um filme iraniano com prêmios em Cannes.

Clarice alugava um quartinho no andar de cima, onde a decadência se encontrava com o charme. A porta dava para uma sacada que mais parecia palco de monólogo trágico. A janela — do chão ao teto — ainda ostentava vidros coloridos, alguns dos quais já tinham partido para o além, substituídos por Clarice com sacolas de supermercado. Nada mais oriental que um vitral com o logo do Carrefour.

A casa era gerida por uma senhora acumuladora — metade do tempo ela esquecia os nomes das inquilinas, a outra metade esquecia que já havia alugado todos os cômodos. Nove moças árabes, uma sul-africana que parecia sempre à beira de um surto, uma russa que falava com os gatos da casa em sussurros… e Clarice. O harém multicultural da dona Layla.

Nos primeiros dias, Clarice estava encantada. O bairro era uma fofura, digno de folheto de agência de turismo. Os comerciantes ofereciam frutas extras no mercado, homens interrompiam o dia para lhe oferecer chá, cafés davam descontos que não estavam no cardápio. Era um mimo atrás do outro. Clarice sorria, acenava, agradecia. Pensava: “que povo caloroso, que vizinhança simpática…”

Mas como tudo na vida de Clarice, a doçura vinha com pós-gosto amargo.

Em pouco tempo, ela notou o estranhamento: as mulheres do bairro a olhavam com olhos semicerrados, tipo quem tenta lembrar se já viu você cometendo um crime. Os sorrisos vinham sempre de barbas. As bênçãos, de bocas masculinas. Já as mulheres… franziam as testas, entortavam os narizes, apertavam os olhos e atravessavam a rua.

Clarice estranhou. Será que era por causa do vitral de sacola? Do sotaque brasileiro que ritmava o seu árabe infantil? Das roupas confortáveis demais para uma mulher solteira?

Um dia, no chá com a sul-africana, a verdade surgiu com um leve suspiro:

You know the girl in the last room? The one with the pink hijab?
Yes, the one with the heels at 2 AM?
Exactly. She’s… working.

Clarice arregalou os olhos. A russa acenou com a cabeça de quem já sabia. E completou, em russo, algo que soou como uma maldição cigana.

Foi aí que tudo fez sentido. Clarice percebeu que havia herdado — junto com o quartinho de vitral remendado — o imaginário do bairro. Ao se mudar para a casa, ela assumiu um papel que não escolheu: a nova integrante do time de entretenimento noturno.

E as frutas grátis? Gorjeta camuflada. O chá? Isca. Os descontos? Investimentos.

Clarice riu. Riu alto. De nervoso, de cansaço, de desespero. Porque em sua vida, até quando tudo parece cenário de Aladim, sempre tem um gênio do mal esperando pra ferrar o enredo.

Ela pensou em escrever uma carta explicando tudo às senhoras do bairro. Mas depois desistiu. Mais fácil seria aceitar a reputação e começar a cobrar pelos limões.