Clarice teve uma infância que hoje renderia documentário premiado na Netflix: “Criança Selvagem: a Menina que Dormia com Cobras e Acordava com Galinhas”. Nasceu numa chácara encostada numa reserva ecológica, onde a cerca era simbólica e o mato, soberano. Enquanto outras meninas ganhavam Barbies, ela ganhava tesoura de poda. Enquanto outras aprendiam balé, ela aprendia a diferenciar bosta de vaca de bosta de cavalo (habilidade útil, embora pouco valorizada em processos seletivos).
Era livre. Pé no chão, cabelo desgrenhado, alma invicta. Subia em árvore como quem sobe na vida – sem medo, sem plano B e com uma confiança que hoje ela inveja.
Aos dezessete, decidiu que queria ser artista. Aos vinte e poucos saiu pelo mundo, de país em país (sem lenço, nem documento). Era dessas que acreditavam em comunidade autossustentável, economia solidária, e que o capitalismo ruiria até a próxima década (spoiler: não ruiu). Estudou artes visuais, participou de coletivos, acampou em protestos, foi vegana por dois anos e só desistiu porque teve uma crise de gastrite existencial ao perceber que o tofu era mais caro que o bife.
Ah, a juventude… Aquele lugar onde a gente mora antes do boleto chegar.
Clarice fez tudo “certo”, ou pelo menos tudo o que seu coração gritou na época. Não se corrompeu, não fez networking com gente babaca, recusou estágios exploratórios, e – claro – jamais “se vendeu”. Resultado? Aos 47, está desempregada, invisível no LinkedIn e com um telhado que pinga mais do que choro em final de dorama.
Sim, ela voltou pro mato. Porque a cidade já não a queria, e o capitalismo… bem, o capitalismo nunca a quis. Voltar foi quase poético, tipo fim de ciclo, ou começo do fim. Só que o mato de hoje não é o de antes. A liberdade que um dia morou ali agora vem com ITR, caminhão de cascalho de ouro pra estrada, nota fiscal de lenha e a eterna dúvida: “Será que chove hoje e inunda meu quarto de novo?”
Enquanto passa café no fogão à lenha (porque o elétrico quebrou e o dinheiro da conta foi usado pra comprar telhas – três), Clarice reflete: onde foi que errou? Será que deveria ter feito administração e fingido gostar? Será que teria sido mais sábio dizer “sim, senhor” ao chefe idiota de vinte e cinco anos com MBA em Miami e cérebro em Copacabana?
Ela não sabe…
Só sabe que cresceu achando que liberdade era um direito, e descobriu que era um luxo. Que autenticidade não rende aposentadoria. E que o mundo real não aceita pagamento em autenticidade – só em Pix.
Mas mesmo assim, entre uma goteira e outra, ela respira o ar puro, borda suas ideias num pano puído e pensa: talvez ainda exista algum valor nisso tudo. Nem que seja só o valor sentimental.
Ou talvez – quem sabe – ela só esteja delirando de frio, porque até hoje não conseguiu comprar o aquecedor ecológico para seu quarto.
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