Clarice estava sentada com as costas encostadas no fogão a lenha, segurando uma caneca de chá de erva-doce, gengibre, camomila e um pouco de resignação em infusão. A madeira estalava preguiçosa. Do lado de fora, o frio não era só físico — era espiritual. Um frio de fim dos tempos. Daqueles que fazem o gato sumir e a alma querer hibernar.

Ela enfiou os pés em duas meias grossas e respirou fundo. “Isso é inverno ou um apocalipse de gelo?”, pensou. E foi aí que a pergunta veio, sozinha, como vapor da xícara:

Será que a gente já desceu pro andar de baixo e não percebeu?

Porque o mundo está esquisito. Esquisito tipo episódio perdido de Além da Imaginação.

Clarice sempre foi fã da série. Aos doze anos, assistiu ao episódio “O Homem Obsoleto” e ficou completamente transtornada. Um bibliotecário julgado como inútil por um Estado totalitário? Um tribunal que decide quem pode viver com base na utilidade? Ela se reconheceu ali. Antes da internet, antes do LinkedIn, antes de coach de alta performance, Clarice já sabia que o mundo estava tentando colocar etiqueta de validade em gente pensante.

E agora, décadas depois, ela se vê dentro do mesmo roteiro — só que sem trilha sonora dramática, só com notificações.

Nos últimos dias, ela acompanha, com o coração prensado feito erva seca, o sequestro de Thiago Ávila e outros ativistas no Mar de Gaza. Um barco com ajuda humanitária, navegando sob bandeira britânica em águas internacionais, interceptado como se a solidariedade fosse contrabando.

Thiago se recusou a assinar um papel cheio de mentiras para ser deportado — e fez isso em protesto, em greve de fome, em dignidade crua.
Clarice pensa: Que espécie de mundo pune quem leva remédio, água, pão?
E premia quem aperta o botão e deleta cidades?

Ela olha para o chá e se pergunta se não é isso que virou o planeta: uma enorme sala de julgamento onde o único crime é tentar manter a decência viva.

“Será que a gente está num episódio longo demais de Além da Imaginação?”
— pergunta, encarando o abismo da chaleira.

Porque é tudo surreal. Uma distopia sem estética, sem direção de arte, sem previsão de fim. O absurdo se tornou cotidiano. Gente desaparece tentando ajudar, e ninguém interrompe o noticiário pra explicar como chegamos até aqui.

Clarice às vezes se pergunta se a trombeta do apocalipse já soou, se tocaram enquanto ela estava no banho, lavando a cabeça, pensando na conta de luz. Vai ver, desceu pro andar de baixo e nem percebeu. Porque a gente vai caindo em silêncio, um escândalo por vez, até achar normal.

Ela toma um gole do chá, que já esfriou.

Lá fora, o mundo congela.
Crianças morrem.
Mentiras viram versão oficial.
E as vozes que ainda gritam são abafadas por memes de horóscopo e vídeos de receitas de airfryer.

Clarice se levanta. Coloca mais lenha no fogo.
Não pra esquentar o corpo — isso, ela já entendeu, é só um efeito colateral.
É pra manter alguma centelha acesa, nem que seja a da consciência.

Enquanto houver um chá, uma caneta, e uma indignação com temperatura de febre, talvez ainda haja esperança de voltar pro episódio certo.

Ou, no mínimo, de rasgar o roteiro e escrever um novo.