Clarice acordou aquele dia com o firme propósito de começar uma nova vida. O plano era simples: sumir. Montanhas, cabana, uma rede de internet só para atualizar o antivírus e ver vídeos de gatos deprimidos no YouTube. Um isolamento calculado, com as desvantagens do mundo canceladas e só as vantagens em soft opening: cheiro de mato, barulho de vento e zero gente fazendo dancinha no TikTok em fila de hospital.
Mas aí Clarice lembrou que ainda precisava de algumas coisas do mundo, tipo café, memes novos e o CPF regularizado. Difícil abrir mão dessas três colunas que sustentam a civilização. Ela também ainda não sabia acender fogueira sem tutorial, e honestamente, não era hora de perder Wi-Fi e dignidade ao mesmo tempo.
O problema, na verdade, era a superpopulação de Homo sapiens ao redor. A espécie que inventou o avião, o antibiótico… e também o orçamento secreto, o TikTok com deepfake do Lula vendendo whey protein, e aquele deputado que achou que o nazismo era de esquerda. Clarice via tudo isso e pensava: “não era mais fácil a evolução ter parado nos gatos?”
Ela tentava ser otimista. Tentava mesmo. Mas o mundo, com seu talento nato pra escândalo e falta de noção, se esforçava diariamente pra deixá-la descrente. Não era só a política, nem só a internet – era a sensação de que a burrice havia virado patrimônio imaterial da humanidade. Um troféu. Um estilo de vida. E os governantes, coitados, eram só o reflexo da média nacional depois de uma overdose de WhatsApp e falta de leitura desde 2003.
Clarice cogitou se isolar, mesmo diante daquele medo: e se, depois de tanto esforço, um influencer resolvesse fazer trilha ali? Com câmera, drone e uma frase do tipo “venha se reconectar com você mesmo (e com meu cupom de 10% OFF no repelente)”.
Um medo genuíno.
Àquela altura, Clarice estava casada com um ser que se achava um gênio incompreendido. Mas Clarice o compreendia perfeitamente – e esse era o problema. O divórcio foi rápido. Foi nesse momento que ela lembrou do pedaço de terra nas montanhas que tinha comprado por impulso num surto existencial pós-eleições. A casa ainda estava em construção, então ela fez o que qualquer mulher sensata faria: fugiu para o Egito, enquanto a casa estava sendo construída (sozinha – antes fosse).
Seis meses entre areia, esfinges, chá de hibisco e fotos pouco explicativas do empreiteiro. Clarice caminhava por templos milenares refletindo sobre a humanidade e concluindo, com certa dor no fígado, que os egípcios do Antigo Império pareciam ter mais noção de organização pública do que qualquer governo atual. O problema é que os egípcios vivos só reforçaram à Clarice que a próxima fuga teria que ser mesmo para as montanhas.
Ao voltar, a casa estava pronta. Um paraíso no meio do mato, sem vizinhos, sem ruído de sirene, e principalmente: sem gente opinando em voz alta. Clarice montou seu refúgio com biblioteca, fogão à lenha e Wi-Fi – afinal, o sarcasmo precisava de palco.
Hoje, conta essa história aos que ainda têm acesso a ela. No máximo três pessoas e o dono do boteco da vila (que ela selecionou pessoalmente para receber suas compras da aliexpress). Quando perguntam por que abandonou tudo, ela ri.
“Foi simples. Viver cercada de seres humanos virou esporte de risco.”
E assim, Clarice seguiu sua vida entre as árvores, as estrelas, e os ecos longínquos de um mundo que ela ainda acessa – mas só pra pagar boleto e rir da tragédia coletiva com um belo chá de erva cidreira do quintal na mão. Sozinha. E, pela primeira vez, feliz sem ressalvas.
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