Foram dois dias. Apenas dois dias sem internet, mas o suficiente para eu acreditar que o mundo era um lugar habitável. Desligaram o wi-fi aqui na reserva ecológica (culpa de um gambá curioso, disseram), e eu, sem ter a quem culpar no grupo do WhatsApp, decidi aceitar o destino: ficaria desconectada, sem atualizações, sem alertas, sem o prazer masoquista de saber que tudo continua dando errado em escala global.
Nos primeiros minutos, senti o desespero do viciado que perde o isqueiro. Toquei na tela do celular umas oito vezes, só para confirmar que a falta de sinal era real. Nada de barrinhas, nada de notificações, nada de “última visualização às 03h47”. Um silêncio tecnológico que, no começo, me pareceu punitivo, mas depois… libertador.
Descobri que existe vida fora da tela… uma vida meio úmida, cheia de sons que não vêm do TikTok. A chuva tinha passado há pouco, e o ar estava tão limpo que parecia lavado à mão. As árvores estavam cobertas de líquens vermelhos — pequenos milagres orgânicos que crescem apenas onde não há poluição. Sim, meus caros, o líquen é o filtro natural do planeta: ele só brota onde o ar ainda não desistiu da humanidade.
Passei longos minutos observando aquele espetáculo microscópico, como se fosse um feed da natureza… um feed que não precisava de login nem senha. E pensei, com toda a arrogância mística possível, que talvez o mundo fosse isso: um punhado de árvores, umas águas translúcidas, e uma mulher descalça acreditando que a salvação mora nos líquens.
Durante aquelas 48 horas, esqueci que o resto do planeta existia. Acreditei sinceramente que o caos tinha tirado férias. Eu, alienada e feliz, fui a Clarice mais pura dos últimos tempos, quase um Buda de meias e chinelos de couro.
Mas, como toda iluminação, a minha também tinha data de validade…
No terceiro dia, o sinal voltou. Um estalo, um bip, e pronto: o apocalipse reinstalado em HD. A primeira notificação foi de um portal de notícias: “Rio de Janeiro vive cenas de guerra.”
Demorei uns segundos para entender. Pensei que fosse metáfora, tipo aquelas manchetes dramáticas de sempre. Mas não. As imagens mostravam fumaça, helicópteros, tiros. O Rio, aquele cartão-postal que a gente finge ser cidade, estava parecendo Gaza — só que com mais engarrafamento.
De repente, toda a paz líquenica evaporou.
Senti uma culpa existencial, dessas que vêm com Wi-Fi. Enquanto eu meditava sobre as cores da natureza, o mundo continuava sendo ele mesmo: insano, inflamável, incurável. As notificações vinham em rajadas. Gaza: novos bombardeios. Sudão: mais mortos. E o Rio, o meu vizinho tropical, ardendo sob o mesmo sol que dourava os líquens da minha reserva.
Há uma crueldade em voltar à conexão: você recupera a internet e perde a inocência.
Comecei a pensar se não seria melhor permanecer ignorante. A ignorância, afinal, tem péssima reputação, mas é um paraíso climático. O problema é que, uma vez que se sabe, não há como des-saber.
Passei o dia inteiro tentando conciliar dois mundos: o das árvores com líquens e o das cidades com drones. De um lado, a paz verde que não precisa de legendas; do outro, o noticiário gritando como um vendedor de apocalipse.
E pensei: talvez a tragédia do nosso tempo seja justamente essa: a impossibilidade de desativar o mundo…
Lá fora, as cigarras faziam seu barulho despreocupado, como se o universo ainda funcionasse direito. Elas não sabiam do colapso financeiro, das guerras tão injustas, dos influenciadores de desgraça. Cantavam por instinto, sem planejamento de conteúdo. Que inveja.
Fui até o rio (o verdadeiro, não o de Janeiro) e mergulhei os pés. A água gelada me lembrou que o corpo, ao contrário da mente, não tem opinião sobre nada. Ele apenas sente.
Pensei em Gaza, onde a água é racionada. Pensei no Sudão, onde o calor é uma sentença. E me perguntei: de que serve a pureza do meu líquen se o resto do planeta respira fumaça?
A resposta não veio…
Em vez disso, uma borboleta pousou no meu braço, insolente, como quem diz: “Você pensa demais, humana.”
Sorri, porque talvez ela tivesse razão.
De volta à cabana, abri o notebook — uma espécie de confessionário moderno — e reli as manchetes do dia. Todas falavam da mesma coisa: violência, ganância, desespero. Era como se o mundo inteiro tivesse decidido repetir a mesma lição, só que cada um com seu sotaque.
E então percebi que a paz que senti nos dois dias de silêncio não era uma mentira. Era só uma amostra grátis.
O problema é que ninguém vive de amostras.
Escrever, para mim, é uma tentativa de alongar essas pequenas trégua. Cada palavra é uma tentativa de resistir ao ruído. Só que, paradoxalmente, é pela escrita que eu me reconecto… com o mundo, com o caos, com a desordem digital.
E talvez seja isso o que nos resta: criar pequenas reservas ecológicas dentro da própria cabeça, lugares onde ainda crescem líquens vermelhos, mesmo quando tudo em volta apodrece.
No fim do dia, fechei o notebook. As cigarras já tinham parado, e o céu estava cheio de estrelas — aquelas luzes antigas que não precisam de energia elétrica nem plano de dados.
Respirei fundo, tentando gravar o som do silêncio antes que o próximo alerta sonoro o destruísse.
Dois dias sem internet foram suficientes para me lembrar de que o mundo é imenso e, ao mesmo tempo, minúsculo. Que há vida além das telas, mas que fugir dela também é um privilégio.
E que, talvez, a verdadeira alienação não esteja em ignorar as tragédias, mas em acreditar que conseguimos viver nelas sem enlouquecer.
Enquanto eu pensava isso, o sinal do Wi-Fi piscou de novo — e, como uma viciada resignada, abri o navegador.
A primeira aba que carregou foi a do noticiário. A segunda, o site de previsão do tempo. Chovia em Gaza. Fazia sol no Sudão. E no Rio… fumaça.
A conexão estava de volta. A lucidez, infelizmente, também.
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