Clarice acordou hoje como quem acorda de um coma emocional: olhos secos, alma ressacada, e uma vaga lembrança de que algo muito importante — e absurdamente ridículo — havia acontecido nas últimas 24 horas. E aí lembrou.

Bolsonaro. De tornozeleira.

Sim, senhoras e senhores, a tornozeleira brilhou mais do que qualquer enfeite de Natal da Ceilândia.

Um símbolo. Uma esperança. Um marco histórico com cheiro de chulé autoritário.

Mas Clarice não estava em clima de euforia. Estava na rebordosa — aquela que vem depois da ilusão de que a justiça tarda, mas não falha (spoiler: ela falha, mas às vezes tropeça e acerta).

Na noite anterior, Clarice cometeu o erro clássico de quem ainda acredita em arte como forma de catarse: assistiu ao novo documentário da Petra Costa, Apocalipse nos Trópicos. Um dedo no olho depois do chute na canela de Democracia em Vertigem.

Dois minutos de filme e Clarice já sentia os batimentos desacelerarem como se estivesse numa sauna escura com golpe institucional no vapor. Ao fim, estava pálida, sentada no sofá, abraçada a um cobertor e a uma descrença profunda no conceito de civilização.

Petra entregou tudo: as imagens, os absurdos, os gritos, os homens suando misoginia na câmera. Foi como assistir à própria vida em retrospectiva traumática, com trilha sonora triste e legenda em CAPS LOCK.

E aí, hoje, a notícia da tornozeleira.

Clarice não sabia se sorria, chorava ou ligava pro Ibama pra relatar um javali em extinção prestes a fugir do território nacional.

Era um sentimento estranho, esse. Felicidade amarga.

Tipo quando a protagonista da série de bullying escolar finalmente se vinga no episódio 16, depois de passar por 15 episódios de humilhação pública, escárnio moral e abandono institucional.

Não é uma sensação boa.

Mas é melhor do que nada.

E nesse país, melhor do que nada já é quase um milagre.

Bolsonaro cavou essa tornozeleira com uma pá bem afiada. Foi incompetência com pitadas de arrogância e uma camada generosa de burrice estratégica. Fez o serviço completo.

Chamou a si mesmo de “futuro detento” com tanto entusiasmo que parecia estar ensaiando pra série dele na Netflix: “Celular Presidencial — Vidas Presas, Votos Livres.”

O tempero final veio com o delírio internacional: a tentativa patética de pedir ajuda à Casa Branca, com o terceiro pateta da família Bolsonaro se auto intitulando “influente” nos corredores do poder norte-americano.

Clarice gargalhou. Gargalhou mesmo.

Parecia episódio de The Office, versão Planalto.

Mas, convenhamos: a tornozeleira foi necessária.

Não por justiça. Mas por segurança.

Porque o risco de fuga mirabolante era real.

Clarice já visualizava a cena: Bolsonaro, disfarçado de pastor neopentecostal, sendo conduzido por um grupo de capivaras treinadas, atravessando o cerrado rumo à embaixada do Catar.

Então, sim: a tornozeleira foi um ato de contenção sanitária.

E um aviso: a primavera está chegando.

Talvez — quem sabe — a condenação definitiva venha com o acasalamento das maritacas.

Elas, ao menos, sabem construir ninho melhor do que muitos ministros do STF.

Clarice terminou seu chá amargo (sem açúcar, porque o país não permite esse luxo) e pensou:

“Talvez a distopia tenha virado tragicomédia.”

E no pano de prato da semana, bordou:

“Apocalipse tropical: capítulo 16 — uma tornozeleira, meia esperança e um país tentando não virar piada de novo.”


Clarice recebeu uma mensagem sobre esta crônica e decidiu publicar a resposta aqui:

Crônica de uma nave quebrada e um planeta estranho chamado Terra

Hoje, entre um ponto e outro, recebo uma mensagem que mais parecia ter saído de um episódio perdido de “Além da Imaginação”. Era de uma senhora recém-chegada ao planeta Campos do Jordão, cidade charmosa conhecida pelo frio, pelo fondue e, ultimamente, por sua impressionante densidade de delírios por metro quadrado.

A criatura – com diploma da USP e tudo! – elogiou meu bordado com a mesma doçura com que, logo depois, tentou me enfiar um cabresto ideológico decorado com tornozeleira eletrônica e véu de ignorância. Um bordado tosco, aliás, desses que a gente desfaz no avesso só pra ver se é isso mesmo que a pessoa quis dizer. Era.

Segundo ela, eu não “sou daqui”. Bingo! Acertou miseravelmente.

De fato, não sou. Vim de Minas, mas, para facilitar a digestão dos terraplanistas de alma sensível, é mais prático assumir logo a verdade cósmica: venho de um planeta de outro sistema solar. A nave quebrou na serra da Mantiqueira e agora estou aqui, condenada a observar a fauna exótica dos terráqueos que se consideram “autênticos brasileiros” com o mesmo fascínio de quem vê uma galinha tentar resolver álgebra.

Diariamente, me choco com os nativos que dizem amar a cultura árabe, desde que ela esteja confinada à letra cursiva de um curso da USP – mas jamais no lenço real de uma muçulmana que decidiu viver livremente entre eles. Aparentemente, o multiculturalismo é lindo até virar vizinho.

Ela me disse que o comunismo nunca deu certo. Provavelmente entre um vídeo do Olavo e outro, enquanto pulava a parte em que o capitalismo também não tá indo lá essas coisas, vide o preço do queijo. Disse que o nosso “ETERNØ PRESIDENTE” é a única salvação do país. Imagino que, para alguns, o Messias ainda é Jair. Um milagre que só funciona com muito WhatsApp e pouco CAPS.

Sugeriu que eu “me informasse melhor”. E eu cá pensando: será que ela sabe que o Google aceita buscas de todo mundo, mesmo dos que acham que a Terra é plana e que o Brasil foi quase salvo por uma motociata?

Enfim, entre um boçalato e outro, vou continuar por aqui, cuidando dos meus bordados e da minha fé – enquanto observo os movimentos desse zoológico político com a serenidade de quem já entendeu que certas criaturas não evoluem. E quando a nave consertar, juro: deixo um aviso bordado em ponto livre na porta da minha casa:

“Não sou daqui. Estou só de passagem. E já vi civilizações melhores falirem com menos gritaria.”

Até lá, minha senhora… Abs.