Clarice não fugiu pra roça – ela apenas voltou pra casa. A cidade, com seu barulho, sua pressa e seus chefes de PowerPoint, foi um desvio temporário. Ela é raiz. Daquelas que conhecem o cheiro do esterco e sabem a diferença entre cupim e formiga-cabeçuda só pelo som no forro.

Mas viver no mato não é aquela poesia de camiseta com estampa de cannabis e xícara artesanal. E o que mais tira Clarice do sério são os românticos de concreto. “Ahhh, Clarice, eu te invejo… queria tanto viver no campo, com paz, silêncio, só o som dos passarinhos…”

Paz, minha filha? Silêncio!? Vem aqui experimentar o que é acordar com uma maritaca descompensada gritando “KRRRÁÁÁÁÁÁ!” às 2h da manhã – e trazendo o bonde inteiro às 3h. Passarinhos, sim, mas do tipo que fazem assembleia no seu telhado às 4h e resolvem as guerras do Oriente Médio aos gritos até o nascer do sol.

E primavera? Ah, a primavera! Que estação maravilhosa… para quem mora no Pinterest. Porque pra quem vive com forro de madeira, é o inferno alado: abelhas, marimbondos, vespas psicopatas e um zumbido constante que te faz pensar se você está numa casa ou num episódio mal editado de “Planeta Inseto”.

Hoje mesmo, Clarice tinha um plano. Um plano simples, desses que envolvem gente, conversa e talvez alguma esperança. Ia se encontrar com a amiga Helena na pracinha, levar uma mesinha charmosa e vender suas artes – as tais almofadas com frases ácidas bordadas com ternura passiva-agressiva. Um respiro, um agrado à alma.

Mas aí, ao sair de casa, Clarice viu.

Um enxame de marimbondos. Na chaminé do fogão a lenha.

Foi ali que o dia morreu.

Sem dizer uma palavra, ela virou nos calcanhares, devolveu a mesinha ao canto da sala, xingou poeticamente os insetos e iniciou a operação fumaça anti-invasores: manter o fogão aceso sem parar, mesmo que estivesse fazendo 28 graus. E lá se vai toda a lenha cortada no outono. Tudo pra convencer a realeza alada que ali não é Airbnb.

Enquanto mexia o fogo com o olhar de quem já desistiu de marcar qualquer compromisso com humanos, Clarice refletia: a roça não aceita agenda. Aqui quem manda é o clima, os bichos, e o forro – esse campo de batalha entre espécies. Luta inglória!

Ela lembrou de uma ex-colega da cidade que tinha dito: “Queria largar tudo, viver do que a terra dá, sabe?” Clarice imaginou a cena: a moça chorando na primeira picada de marimbondo, ligando pra defesa civil por causa de um enxame de abelhas, tentando “se conectar com a terra” mas pedindo iFood porque queimou o arroz no fogão a lenha.

O mato, minha filha, não é conceito de lifestyle. É realidade. É maritaca com insônia. É gambá no galinheiro. É você discutindo com um enxame às sete da manhã.

E Clarice? Bom, ela segue ali. Bordando enquanto alimenta o fogo. Respirando fundo – quando não está tossindo por causa da fumaça – e se lembrando que natureza não é cenário de fundo de tela. É sistema bruto. Selvagem. E, claro… totalmente anti-planejamento.