Clarice já deveria ter aprendido a lição: ex-marido é como aquela gaveta da cozinha cheia de talheres tortos, elásticos frouxos e abridores de lata enferrujados. Não serve pra nada, mas insiste em existir. O sujeito, de tempos em tempos, resolve que é anfitrião global de embaixadas alternativas, recebendo visitas estrangeiras em sua casa — que, diga-se, não tem nada de mais além de um sofá gasto e um wi-fi vagabundo. E quando a paciência dele se esgota (o que costuma acontecer em 24 horas, 48 no máximo), ele encontra a solução perfeita: empurrar o turista para Clarice. Afinal, o sítio dela é bucólico, tem suíte de hóspedes e, melhor ainda, é de graça.

De graça. A palavra que transforma homens respeitáveis em oportunistas sem-vergonha.

Pois bem, dessa vez, a vítima foi Clarice. A oferenda: um iemenita sorridente, acompanhado por dois “secretários” — palavra chique para designar rapazes de mochila que parecem ter saído de um curso rápido de guia turístico no YouTube. O iemenita, que ela descreveu mentalmente como “um anãozinho de jardim com diploma de poliglota”, estava exultante por visitar aquela “cidade pitoresca”. Pitoresca mesmo, pensou Clarice, é a sua paciência.

O enredo começou mal. Apesar de Clarice ter preparado um roteiro de acesso mais detalhado que bula de remédio — com direito a setas, pontos de referência e até a sugestão “vire à esquerda no cachorro bravo, mas simpático” — os estrangeiros se perderam. Claro que se perderam. Clarice já previa: ninguém lê instruções. Resultado? Ela, de pantufa e mau humor, precisou sair de casa para resgatar os peregrinos perdidos, como se fosse motorista de aplicativo sem gorjeta.

Quando finalmente chegaram, Clarice suspirou: o iemenita entrou como quem retorna a um palácio ancestral. Ria, gesticulava, contava histórias infinitas. O jantar foi um show: ele comeu como se fosse a última refeição do Ramadan e falou como se o ar fosse ilimitado. Clarice, já com dor de cabeça, pensava se não deveria cobrar ingresso dos próprios mosquitos que assistiam ao espetáculo.

A parte mais doce da noite? O anãozinho de jardim cansou. Desceu para a suíte de hóspedes e trancou a porta, sumindo como mágica. Clarice quase agradeceu aos céus, até perceber que o milagre tinha um adendo: dois rapazes largados na sala, esparramados no tapete, cada um roncando num idioma diferente.

Privacidade? Zero. Intimidade? Enterrada. Ela acordava de madrugada e encontrava homens desconhecidos fazendo fila no seu banheiro, sem cerimônia. Clarice não sabia se ria, chorava ou distribuía escovas de dente descartáveis como lembrancinha. O sítio bucólico tinha virado alojamento estudantil.

No dia seguinte, Clarice, que não nasceu para ser mártir, decretou: basta. Com sua voz mais cortante que faca de pão amanhecida, intimou os secretários a reservar um hotel. Qualquer hotel, pensão, barraca de beira de estrada. Se tivesse telhado e descarga, estava ótimo. Milagrosamente, eles obedeceram. Fizeram uma reserva: um quarto para três adultos. Clarice sorriu. Finalmente, teria sua casa de volta.

Mas aí — porque sempre há um “mas” — o tio iemenita acordou às dez da manhã, fresco como alface, e anunciou: “Depois do passeio, volto para a casa de Clarice. Os rapazes podem ficar na pousada”.

Clarice arregalou os olhos, congelou o garfo no ar e soltou um “OI???” tão sonoro que os pássaros do sítio mudaram de árvore. Voltar para a casa dela? Transformar sua suíte em sede permanente do consulado iemenita? Nem pensar.

Em menos de cinco minutos, Clarice executou a expulsão mais ágil que já se viu desde a Revolução Francesa. Malas na porta, rapazes em fila, o iemenita piscando sem entender. Clarice, com a calma de uma carcereira veterana, explicou: “Aqui não é hotel. E, se fosse, a diária seria mais salgada que o Mar Morto”.

Silêncio. Ninguém ousou retrucar.

Quando a poeira baixou e a casa voltou ao estado natural — apenas barulho de vento e cheiro de café — Clarice respirou fundo. Já decidiu: da próxima vez, nada de graça. Vai colocar uma placa na entrada: “Hospedagem rural: diária em euro, sem desconto para ex-maridos, diplomatas ou secretários perdidos”.

Assim, talvez, quem sabe, nunca mais apareça nenhum iemenita sorridente, nenhum secretário desavisado, nenhum ex-marido com ideias brilhantes.

E se aparecer, que ao menos venha com cartão de crédito.