Clarice não é boazinha. Nunca foi.
Tem um tipo de solidariedade que vem mais da inteligência do que do coração. É que, vivendo onde vive, cercada de desocupados, viciados e almas desorientadas, ela aprendeu que a gentileza é uma forma eficiente de seguro residencial. Dá carona de vez em quando — não por altruísmo, mas por precaução. Sabe que, quando o ladrão lembra do seu rosto, é mais provável que escolha roubar o vizinho.
E é assim que a vida segue, entre a esperteza e a exaustão. Clarice é uma mulher segura, firme no volante e de saco cheio das pessoas. Aprendeu a não esperar nada de ninguém e a fazer o que precisa ser feito com o mesmo entusiasmo de quem escova os dentes: porque é necessário, não porque gosta.
Na sexta-feira passada, o dia amanheceu gelado. Serra coberta de neblina, estrada molhada, aquele tipo de clima em que até o sol parece gripado. Clarice voltava para casa dirigindo sua Montana, que já conhece de cor os buracos do caminho. E lá estava ele — o Alemão.
Figura conhecida, patrimônio duvidoso da região. Pedala quinze quilômetros de serra, sob sol ou chuva, com a obstinação de um castigo divino. Dizem que o Alemão nunca dorme; apenas entra em modo de espera. Clarice o conhece há anos, embora preferisse não conhecer. Às vezes o encontra caído à beira da estrada, às vezes pedalando no escuro, e, quando o humor permite, o recolhe na caçamba.
Mas naquela sexta, Clarice cometeu o erro que a humanidade repete desde Adão: ter pena. “Está frio demais”, pensou. “Dessa vez pode vir na frente.”
Foi o início de sua ruína respiratória.
Dizem que europeu não gosta de banho, né? Parece que não é lenda…
Alemão entrou sorridente, se sentindo íntimo.
E ele com um cheiro que não pode ser descrito sem ofender as palavras. Era uma mistura de mofo, cerveja, suor e filosofia barata. O tipo de perfume que não vem de frascos, mas de experiências de vida. Clarice abaixou discretamente o vidro, na esperança de que o vento levasse o demônio embora. O vento tentou, mas também desistiu.
O Alemão, entusiasmado, começou a falar. Falar não — pregar. Um monólogo infinito, salpicado de saliva e confissões. Falava da infância, da injustiça, do governo, da bicicleta, de Deus e de um cachorro que só ele via. Clarice, concentrada em não respirar, tentava manter uma distância simbólica — difícil, considerando que estavam lado a lado e ele cuspia verbos como se fossem bênçãos.
Foram dez quilômetros de penitência e perdigotos. Clarice parou o carro com um “pronto, já deu” e o despachou na entrada da vila. O Alemão agradeceu com um sorriso de gengiva e um pigarro carregado de vírus. Ela fechou o vidro e disse para si mesma: “Nunca mais.”
Mas o “nunca mais” de Clarice tem prazo de validade curto. Na manhã seguinte, acordou com febre, dor no corpo, garganta arranhando e a certeza de que estava morrendo. E como toda pessoa prática, não dramatizou. Tomou um comprimido, fez chá de tudo que encontrou — gengibre, limão, vinagre, canela e arrependimento — e esperou o corpo decidir se queria viver ou não.
Três dias depois, estava viva.
O vírus passou, mas deixou lembrança: uma tosse seca e insistente, dessas que interrompem o silêncio só para lembrar que a vida é uma piada de mau gosto.
Enquanto se recuperava, Clarice pensava no Alemão. Não com raiva — Clarice não desperdiça emoção com quem não merece —, mas com uma espécie de respeito pelo poder destrutivo da ignorância alheia. O Alemão, provavelmente, já estava na estrada de novo, pedalando e espalhando germes com o mesmo entusiasmo de um missionário.
Clarice riu sozinha. “Solidariedade dá nisso”, murmurou. “O bem volta, mas de máscara.”
Agora ela promete para si mesma que sempre que passar pela serra, fingirá não ver o Alemão. “Foca os olhos no horizonte, segura firme o volante e lembra da febre, do cheiro e da tosse.”
Mas a memória é traiçoeira: basta o frio apertar, e lá vem a piedade cutucar. Clarice luta contra ela como quem luta contra um vício antigo.
Porque Clarice sabe que, no fundo, o problema não é o Alemão. O problema é ela — essa mania teimosa de querer consertar o mundo com pequenos gestos estratégicos. Como se o caos se importasse.
E é por isso que Clarice continua: prática, sarcástica e lúcida. Uma mulher que faz o bem como quem paga imposto — sem prazer, mas com a consciência de que é o mínimo para viver em paz.
E se a paz vem acompanhada de gripe, que seja. Pelo menos é uma gripe que ela entende de onde veio.
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