Clarice nunca escolheu a queda, mas sabia cair com alguma elegância. O cliente fixo – aquele que parecia tão garantido quanto o imposto de renda – desapareceu como um fantasma sem despedida. Nem um “foi bom enquanto durou”, nem um emoji de adeus. Só o vácuo. O vazio não paga aluguel, então Clarice caiu no que apareceu: administração de um hostel no centro de São Paulo.
Hostel: palavra chique para o que, na prática, era um circo improvisado. A equipe era composta por quatro personagens que fariam corar de inveja qualquer roteirista da comédia pastelão. Havia o sujeito que transformava cada chave perdida em uma tragédia shakespeariana, a moça que travava guerras homéricas contra a impressora, e o outro que confundia hóspedes como quem confunde baralho – “você não é do quarto 12?”, “não, sou do 8, mas obrigado pelo upgrade”. No meio do redemoinho, estava Clarice, a única que ainda fingia saber o que estava fazendo.
Eis que um dia o telefone toca. Clarice, já preparada para ouvir sobre toalhas extras, check-out estendido ou a clássica reclamação do chuveiro frio, recebe o inesperado: do outro lado, uma mãe.
Não uma mãe qualquer. Uma mãe preocupada, aflita, com aquele tom de voz de quem quer embrulhar o filho de vinte e quatro anos em plástico-bolha antes de soltá-lo no mundo.
– Olha, meu filho vai se hospedar aí… começou a voz, carregada de drama. – Eu só queria confirmar umas coisinhas…
Coisinhas. Clarice segurou a respiração.
Vieram as perguntas: se a cama era limpa, se o lençol era trocado, se o quarto tinha janela, se havia câmeras, se o bairro era seguro, se os outros hóspedes eram “gente boa”. Clarice respondeu tudo com a calma de quem já presenciou uma infestação de pombos no corredor e uma festa surpresa organizada sem aviso.
Até que não resistiu:
– Ele é menor de idade?
– Que isso! Ele já tem vinte e quatro anos! – disse a mãe, ofendida como se Clarice tivesse sugerido que o rapaz ainda usasse fralda.
Clarice riu por dentro. Vinte e quatro anos e a mamãe ligando para confirmar se a cama era de verdade e não feita de pregos. “Filhotinho”, pensou, “mas com CPF e título de eleitor cancelado por falta de voto”.
A explicação final chegou quando o rapaz apareceu no hostel. Um jovem magro, com aquela barba que mais parecia sombra de preguiça no rosto. No olhar, a mistura de confusão e dependência que Clarice já tinha visto em gatos abandonados à porta do hostel.
Ele fez o check-in e, com a naturalidade de quem pergunta a hora, soltou:
– Como eu faço para tomar banho?
Clarice piscou devagar, quase desconfiando de uma pegadinha. Não era. O rapaz queria o tutorial completo. Onde pegava a toalha, como ligava o chuveiro, se precisava comprar sabonete, se havia “tempo limite” para o banho.
Clarice respirou fundo e explicou. Passo a passo. Instruções de uso da vida adulta.
– Meu filho, é simples: você entra no banheiro que estiver vago, tira a roupa, a água cai de cima… você se lava. Pronto, acabou.
Ele agradeceu, tímido, mas voltou pouco depois com mais perguntas: onde guardava a mala, se podia usar a chave mais de uma vez, se precisava pedir autorização para dormir.
Era oficial: a mãe terceirizou a função para o hostel, e o hostel, como sempre, terceirizou para Clarice.
No final do expediente, exausta, Clarice se sentou na cadeira dura da recepção. Enquanto os trapalhões da equipe discutiam se a máquina de café precisava de filtro ou fé, ela tirou da bolsa um pedaço de linho e linha colorida. Bordava. Ponto atrás, ponto cheio, ponto que desenhava sua paciência em silêncio.
Era o bordado que a salvava. Enquanto ouvia absurdos, costurava pequenas ironias no tecido. Porque se a vida insistia em virar crônica, o bordado virava legenda.
E naquela noite, decidiu o que bordar na almofada da vez:
“Aos 24 anos, saiba: o chuveiro liga se girar o registro.”
Uma lembrança suave, em ponto rococó, para todos os filhotinhos do mundo.
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