Clarice já ouviu muitas vezes que ela é “a purga dos pecados do pai”.

E, francamente, faz sentido.

Seu Roberto, o pai, foi uma criança com energia suficiente pra abastecer a Usina de Furnas.

Levado. Arteiro. Endiabrado no modo mineiro discreto. Enquanto outras crianças faziam pipa e bolinha de gude, ele enfiava o dedo na tomada e fugia de cavalo emprestado. Tinha um talento especial para sumir em mato fechado e voltar com algum ferimento ou bicho — às vezes os dois.

A história que Clarice veio contar hoje, ela ouviu desde pequena, repetida como lenda urbana com CPF: o dia em que seu Roberto trouxe um jacaré do Pantanal pra Belo Horizonte.

Sim, você leu certo. Não é metáfora.

É um jacaré de verdade. Do papo amarelo. Do Pantanal. Em Minas Gerais.

Tudo começou quando o pré-adolescente Roberto foi com o avô Olavo pescar no Mato Grosso. Teoricamente, era uma viagem de aprendizado, de conexão entre gerações, de “formação de caráter”. Na prática, foi um curso intensivo de como dar trabalho pro vovô e ainda encher o saco dos amigos pescadores.

Enquanto os adultos lançavam iscas e brigavam com o anzol, Roberto sumia pelo mato. Nadava em rios infestados de piranhas com a confiança de quem nunca leu uma notícia na vida. Até que um dia, encontrou uma lagartixinha engraçada perto da margem.

“Bonitinha”, pensou.

“Vou levar.”

Enfiou no bolso. Depois, na bolsa. Depois, no fusca.

E assim, sem nenhuma quarentena sanitária ou autorização do Ibama, o pequeno réptil fez o translado Pantanal–Minas em classe econômica: mochila com lanche e biscoito Bono.

Chegando em casa, a tal lagartixa foi esquecida num canto. Até que dona Laís, a mãe de Roberto (e avó de Clarice), encontrou a criatura — agora um pouco maior, com dentes, humor duvidoso e um olhar enviesado.

Aquilo crescia mais rápido que ansiedade em reunião de condomínio.

Em poucos meses, já não cabia mais na caixa de sapato nem na paciência da família.

Foi então que o menino Roberto, com sua clássica capacidade de resolver problemas criando problemas maiores, teve uma ideia brilhante:

— “Vamos soltar na Lagoa da Pampulha!”

Claro! Por que não? Nada diz “resolução responsável” como largar um animal selvagem, nativo do Pantanal, num cartão-postal de Belo Horizonte, ao lado da igrejinha do Niemeyer e das pedaladas dominicais.

Dito e feito.

Numa manhã discreta, o jacaré foi levado, dentro de um balde de tintas, e depositado nas águas mornas e, na época, ainda meio decentes da Pampulha.

O que ninguém esperava é que o bicho ia se adaptar.

Ia sobreviver.

Ia ficar.

Décadas se passaram. A lagoa virou ponto turístico, cenário de casamento (inclusive dos próprios pais da Clarice), cartão postal, e… residência oficial do Jacaré da Pampulha.

Espécie do Pantanal, com cidadania mineira e histórico de sequestro afetivo.

Clarice, hoje, toma seu chá amargo de gengibre com canela e pensa:

— “E eu me pergunto por que tenho esse ímã pra problema, essa vocação pra caos, essa mania de carregar tralha emocional pra casa?”

É genético.

Enquanto muitos se perguntam de onde veio o jacaré da lagoa, Clarice sorri com a superioridade de quem já sabe.

Ele não veio. Foi trazido. De carona. Pelo seu pai. De bermuda cargo e coragem inconsequente.

E, no fundo, ela sabe: o jacaré é só um símbolo. Do que acontece quando a curiosidade vence a lógica. Do que nasce quando se mistura infância, mato e ausência de supervisão.

E, acima de tudo, de como certas decisões insanas viram histórias de família.