Clarice estava lavando a louça quando viu de novo aquela mensagem ridícula do terceiro ex-marido:
“Você deveria começar a juntar bastante dinheiro… vou precisar em breve.”
Ela não respondeu, claro. Nem xingou. Apenas olhou pro céu da cozinha e disse em voz alta:
— Ah, me poupe, Senhor!!!
Mas a mensagem teve um efeito colateral inesperado: trouxe à tona uma memória longínqua, de mais de vinte anos atrás, ainda em Minas Gerais. Uma época em que Clarice era jovem, não sabia ainda identificar um embuste pelo perfume, e acreditava que príncipes egípcios eram apenas personagens de novela – e não homens reais, deitados sem cueca no sofá alheio.
A história era da Sofia.
Ah, Sofia… Uma mulher brilhante. Policial civil, independente, com casa própria aos 20 anos, aposentadoria programada, e um QI tão afiado que poderia abrir lata de milho.
Mas como toda mulher sagaz tem seu ponto fraco, o de Sofia era o exótico. E o exótico chegou via internet, no formato de um príncipe egípcio.
O homem era puro mistério digital. Prometia palácios, cavalos árabes, vida no luxo, véus ao vento e uma existência de rainha. Sofia, normalmente imune a cantadas comuns, caiu feito adolescente em fanfic. Tudo foi arranjado: ele viria ao Brasil buscá-la. O casamento já era certo. E, claro, Clarice foi convocada para o grande dia.
— “Preciso que você vá lá em casa. Não quero receber o príncipe sozinha, né?” — disse Sofia, muito séria.
Clarice, meio cética, meio curiosa, foi. Achou que no mínimo teria um bom motivo pra rir no futuro.
E teve. Só não imaginava que o motivo viria tão rápido.
Chegando à casa, Clarice mal teve tempo de tirar os sapatos. A porta da sala abriu e lá estava ele:
O Príncipe.
Vestido branco até o chão, decotado até onde a lei permite, sem cueca – dava pra um cego perceber. Estava deitado no sofá como quem já é dono da mobília, numa pose de esfinge cansada, olhando pro teto como quem contempla o sentido da vida (ou o ventilador).
Clarice travou. Aquela era uma jovem Clarice, ainda educada demais, ainda sem os músculos faciais desenvolvidos para o sarcasmo visível. Não riu. Hoje riria tanto que precisaria de inalação depois.
Puxou Sofia num canto e sussurrou:
— “Sofi, você tem certeza de que isso aí é da realeza? Parece mais figurante de teatro municipal…”
Mas Sofia, apaixonada até o último folículo, rebateu com a lógica do delírio amoroso:
— “Você tá com inveja porque não tem um príncipe egípcio.”
Casaram-se. Tiveram um filho. E Sofia foi levada para o Egito.
No começo, a ilusão se manteve: palmeiras, camelos, sorrisos, família.
Mas não demorou muito pra realeza virar regime. O príncipe virou carcereiro, o passaporte sumiu “por segurança” e o segundo filho deu o ar da graça no meio de uma crise de identidade geopolítica.
Sofia, finalmente acordada do coma hormonal, tentou fugir. E fugiu, pois tinha treinamento policial – até que isso é útil, às vezes.
Atravessou o deserto. A pé.
Com um bebê na barriga e outro andando do lado, chegou ao país vizinho pedindo abrigo, água, e de preferência uma passagem de volta para o Brasil.
Voltou. Com dois filhos egípcios, sobrenome impronunciável e uma fobia definitiva de homens de túnica. Mora até hoje na mesma casa onde recebeu o tal príncipe. O sofá foi trocado, mas o trauma ainda habita o corredor.
Clarice sorri ao lembrar. Sorri com um misto de pena, carinho e gratidão por não ter sido ela a esfinge escolhida. Olha pro celular de novo, revê a mensagem do ex-marido pedindo que ela economize pra pagar as dívidas dele, e pensa:
“Tem homem que tira nosso dinheiro. Tem homem que tira nosso juízo. Mas alguns conseguem tirar os dois – e ainda exigem reconhecimento.”
Volta pra cozinha, pega uma colher de brigadeiro do pote, e escreve no pano de prato da semana:
“Desconfie de qualquer homem que venha montado num cavalo árabe. Ou num plano de negócios.”
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