Clarice passou o café e suspirou. Nem precisava açúcar, o amargor já vinha embutido na memória do que ouvira ontem. A história da Helena. Sim, Helena, aquela mulher admirável que, se este país tivesse um pingo de senso, estaria dando aula em universidade pública, presidindo comissões internacionais ou ao menos vendendo tapetes feitos em tear manual por mil reais, com fila de espera.
Mas não. O Brasil não é para pessoas como Helena.
Helena tem mestrado em crítica literária. Já leu Proust em francês, traduziu Emily Dickinson em guardanapos e viajou para mais de 30 países – e não foi de mochilinha blogueira, não. Foi pra estudar, escrever, viver. Uma mulher com mãos de ouro e cabeça de biblioteca.
E mesmo assim, caiu. Caiu bonito. Caiu feio. Caiu fundo.
Clarice já sabia: os narcisistas são como areia movediça emocional. E Helena, com seu coração grande e um leve traço de síndrome de “eu consigo consertar qualquer alma danificada”, acabou enredada.
Vendeu sua casa na cidade, com a esperança lírica de ouvir o canto dos passarinhos e respirar ar puro sem cheiro de escapamento. Comprou um sítio. Um paraíso com árvores frutíferas, varanda de cerâmica rústica e aquele chão que range poesia – um sonho de vida.
Pagou tudo com seu dinheiro, declarou no imposto de renda, fez tudo certinho. Exceto por um pequeno detalhe: colocou o nome do traste no contrato de compra e venda.
Sim, você leu certo. O nome do narcisista romântico. O homem que dizia coisas como “sua luz me cura” enquanto monitorava a senha do celular dela e batia a porta com força porque o pão estava gelado.
Foram sete anos. Sete longos anos de manipulação, culpa e esperanças miúdas como inseto de verão. Até que um dia, Helena acordou e disse: basta! Com medida protetiva e tudo. Pôs o infeliz pra correr. Um espetáculo de coragem.
Mas aí… veio o plot twist jurídico.
O traste – aquele que nunca investiu um centavo, nem um parafuso – entrou na justiça pedindo metade da propriedade. Metade. Como se o amor não bastasse, ele queria a terra também. O chão. A paz e a alma da Helena, parcelada em 50%.
Helena, esperta, contratou um advogado famosíssimo no Instagram. Desses que fazem reels com frases como “empoderamento é justiça” e usam a cor roxa em tudo porque “representa a luta feminina”.
Pois bem. O paladino das redes esqueceu de anexar os comprovantes de pagamento da compra – todos, absolutamente todos, feitos da conta de Helena direto pro vendedor. Uma coisa básica, simples, tipo primeira aula de Direito para estagiários com déficit de atenção.
E por causa disso, Helena perdeu. Em duas instâncias. Sim. Vai ter que dividir o sítio com o excremento – que agora pode legalmente plantar sua desgraça na terra que nunca foi dele.
Clarice desligou o fogo e bufou. Em que mundo uma mulher com esse histórico, essa força, essa honestidade… perde pra um traste agressivo só porque foi gentil demais no amor e ingênua demais no advogado?
Mas é isso. No Brasil, ser mulher é pagar com sangue e suor, e ainda dividir a escritura com o embuste. A Justiça? Ah, essa anda ocupada demais com lives e dancinhas.
E Helena? Helena agora borda tapetes com frases como: “corações podem ser grandes, mas escritura tem que ser pequena: só seu nome.”
Clarice sorri, amarga. Será que a próxima crônica será sobre o dia em que Helena foi morar num puxadinho do próprio sítio, enquanto o traste planta couve na parte dele e dá entrevista dizendo que “também sofreu muito”?
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