A Ministra e a Musa da Proteína

Clarice acordou cedo naquele dia. Não por escolha, veja bem – ninguém em sã consciência troca o último cochilo por vontade própria. Foi a bomba d’água do vizinho patriota de WhatsApp, que resolveu religar o motor às 4h45 da manhã – um trambolho barulhento instalado, sem pudor, praticamente na orelha da Clarice – porque, para ele, silêncio é coisa de comunista ou de quem não acorda pra trabalhar. Com o humor já calibrado para o caos, Clarice fez seu café amargo – não por estética, mas porque a estévia plantada na horta secou completamente com a geada dos últimos dias e ela se recusa a ir ao boteco da Rose até terminar o dossiê da humilhação nacional: o tratamento dispensado à Marina Silva no Congresso Nacional.

A cena foi grotesca. Marina, a mulher que já foi indicada ao Nobel da Paz, reconhecida internacionalmente como liderança ambiental, a que senta com chefes de Estado e levanta de reuniões da ONU com aplausos – foi tratada como se estivesse ali para oferecer amostra grátis de sabão em pó.

Clarice assistiu àquilo com o queixo caído e o café esfriando. A ministra falava com sua voz calma e firme – aquela firmeza que só quem sobreviveu à seringueira, ao preconceito, ao analfabetismo e a três décadas de política suja pode ter – e, do outro lado, os homens a interrompiam, debochavam, tentavam intimidá-la. Um espetáculo deprimente de testosterona insegura e ignorância parruda.

Mas, dias antes, Clarice tinha assistido à mesma CPI onde Virginia, a musa da suplementação de nada com coisa nenhuma, foi tratada como princesa de mármore. Aquela cuja maior contribuição para a sociedade foi fazer o Felca parecer um esteticista. Virginia entrou no Congresso como se estivesse desfilando no tapete vermelho do BBB da Indignidade. Sorrisos, elogios, palavras doces, perguntas em tom de flerte. Gente oferecendo água, cafuné e talvez um selinho no final. Era quase um chá da tarde com a realeza da irrelevância.

Clarice fechou o notebook que já estava superaquecido, esfregou os olhos e pensou: Esse país é mesmo uma mistura de deboche com tragédia. Porque, veja bem, não importa o currículo. Não importa que Marina tenha saído do Acre profundo e chegado ao topo do mundo com sua inteligência, sua ética e sua força. Ainda assim, quando uma mulher pisa naquele chão de carpete gasto do Congresso, o que contam são os saltos, os cílios, e se ela dá risada da piada machista ou não.

Marina, mulher preta, amazônida, ex-empregada doméstica, com fala pausada e sem silicone nos lábios, representa tudo que o patriarcado quer apagar. Já Virginia, branca, artificialmente turbinada, que construiu sua relevância no YouTube com vídeos onde “refeição” é sinônimo de whey e “livro” é sinônimo de legenda no Instagram, essa sim foi tratada como estadista.

Clarice bufou. “Não basta ser competente. A gente tem que ser decorativa, subserviente e disponível?!” Ela mesma já tinha passado por entrevistas de emprego onde sua formação e habilidades valiam menos do que o brilho labial da recepcionista. “Você é impressionante”, diziam. “Mas não pode querer ganhar mais de um salário mínimo, né?” – e riam, como se a miséria fosse uma piada nacional.

Marina não riu. E Clarice também não. Mas depois riram juntas, em pensamento, da ironia cruel de um país onde a floresta é tratada como obstáculo ao progresso, e o progresso é medido em curtidas e quantidade de seguidores. Onde mulheres que pensam são inconvenientes e mulheres que se calam são premiadas.

A história do Brasil é essa mesma: um palco em que as Marinas sustentam o teto com sangue e suor, enquanto as Virgínias posam para a foto na varanda, segurando uma taça de espumante – provavelmente importado, e com agrotóxico.

E Clarice? Clarice terminou seu café, agora frio como o respeito que falta nesse país, e escreveu mais uma crônica. Porque é só isso que ela pode fazer agora: usar palavras como arma. Afinal, se até Marina apanha em rede nacional, o que sobra para as outras?

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2 Comentários

  1. Ligia Maria

    Já choramos muito e continuamos a chorar, quando Maria tenta despertar Aurora, o desastre ainda é pior. Maria fica indignada por quem nem sabe o significado da virtude. Maria, volta pra lida, deixa Aurora acreditar que a justiça de Deus é porrete no lombo de Narciso. Volta pras panelas, lá tudo tem sentido e cor.

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